Sobre a lembrança e sobre a memória

por | maio 30, 2023 | Newsletter, Pessoal | 0 Comentários

1.

Quando criança, eu amava assistir a fita VHS do meu aniversário de 3 anos. Era uma festa no quintal de casa que reunia toda a minha família e algumas várias crianças do bairro. O tema era da Chapeuzinho Vermelho. Eu estava com um vestido vermelho e branco, com um chapéu de renda e com o cabelo cacheado de babyliss. Lembrava até ontem de cenas desse “filme”: eu brigando com meu primo quando ele insistia em ver meus presentes antes de mim; eu dançando na frente da minha mesa com amigos; eu abraçando o meu presente favorito, um husky siberiano de pelúcia que nada criativamente foi batizado de Husky. As memórias desse dia se tornaram intactas na minha cabeça, afinal, assisti esse registro por anos, quase que diariamente, até que a fita se perdesse no meio das bagunças do quartinho.

Dia desses, esse registro veio do nada à minha mente e perguntei pra minha mãe se ela tinha ideia de onde estava essa fita, se ela ainda existia. Ela disse que procuraria na bagunça do quartinho, mas que era pra eu não criar muitas expectativas. Para minha euforia, ela encontrou não só essa, como várias outras pequenas e inúteis relíquias de outrora, como uma coleção de papéis coloridos de fichário, inúmeros xerox da faculdade – essa coisa obsoleta -, certificados importantíssimos, como o do meu grupo de teatro dos 9 anos, e um cachepô breguíssimo feito com fotos do meu segundo namoradinho impressas em preto e branco. Pedi pelas fitas e disse que todo o resto poderia ir para o lixo sem pestanejar.

diretamente de 1995

Tinha uma lembrança muito bonita desse dia. Eu lembro que me via como uma criança alegre, desinibida, cheia de amigos. Lembro que eu dançava na minha festa como uma pequena popstar. Me enxergava como uma chiquitita, como a líder de um grande grupo. Então, fiquei um pouco desolada quando recebi o arquivo e revi essa mesma memória sem o avançado e nada confiável filtro de edição chamado lembrança.

A versão da minha recordação nada se pareceria com a versão real que eu assistia, não fosse o registro fiel da roupa que eu usava. Na gravação, eu estava sempre sozinha. As danças na frente da mesa eram feitas sozinhas. A interação com os presentes era feita sozinha. Quando eu dividia a cena com outra criança, ficava desconfortável e só voltava a sorrir e brincar quando voltava a ficar sozinha. Aquilo me deixou com uma sensação estranha. Em nenhuma das minhas lembranças, aquelas que eu julgava tão intactas, eu me via como uma criança solitária e custei a acreditar que a versão que eu me recordava fosse tão diferente da real. Perguntei pra minha mãe e ela me disse simplesmente que “eu sempre fui daquele jeito, mesmo”. Eu é que não lembrava.

2.

Comecei a refletir muito sobre a diferença de lembrança e memória. Descobri que existe um nome para essa mudança que a gente faz ao criar uma recordação no nosso cérebro: é Efeito de Valência Afetiva na Memória. Esse efeito explica que as emoções ou sentimentos associados a um evento podem afetar a forma como registramos ele, influenciando tanto a intensidade quanto a precisão dessas lembranças.

Depois de ler um ou outro resumo sobre o tema, cheguei a uma simplista e romântica conclusão: a de que memória é o que a gente registra na cabeça e lembrança é o que a gente guarda na alma.

Com uma bebê de 7 meses (quase 8) em casa, pensar sobre o tempo e o registro dele se torna ainda mais inevitável. Esses dias, enquanto desbloqueava o iPad para ver uma série durante o primeiro soninho da noite (entre as 19h às 23h), fui nocauteada por um desses vídeos automáticos do iOS que seleciona várias fotos, coloca um título estupidamente simples e literal e te leva para outra época por alguns segundos. Ele me mostrou a seleção “Brincadeiras em Casa”, onde revivi, em 30 segundos, os últimos quase 8 meses de uma Maria Clara que já é um ser humano completamente diferente daquele que ilustra o filme. Ao ver aquele sorrisinho sem dentes, aquelas coxas enormes e as 67 fotos onde ela está deitada nas minhas pernas, mal consegui me lembrar de como aqueles primeiros meses foram difíceis e desesperadores.

O tempo é implacável e, desde que pari, absolutamente todas as pessoas que são pais me dizem que os dias são longos e os anos são curtos. Eu só pensava nisso enquanto atravessava os primeiros 10 dias de nascida da minha filha que, paralelos à minha intensa felicidade pela chegada dela, foram os piores 10 dias da minha vida inteira. Eu repetia para mim mesma que os anos seriam curtos, quase como um mantra para conseguir atravessar àquelas noites.

É louco que mesmo com o excesso de registros que fazemos hoje, as lembranças que tenho daquela época em nada se parecem com o que foi vivido. Não fossem as anotações do meu diário e de frases duras, como “sinto que estou sofrendo com a morte de alguém que amava muito, mas não tenho tempo nem para elaborar esse luto” eu só me lembraria do som do solucinho, do cheiro do cabelinho e de todas as vezes em que ela sorriu ao me ver.

Toda uma experiência traumática e avassaladora foi editada por um filtro rosado chamado lembrança.

3.

Mesmo com o excesso de registros, que na teoria poderia diminuir os riscos dessa valência afetiva na memória, ainda contaminamos as memórias com nossos sentimentos. Insistimos em transformá-las em lembranças e, com isso, nos tornamos narradores não-confiáveis¹ de nossa própria história.

Acho que não existe maneira de contar um fato e isentar esse relato desses mesmos sentimentos e sensações. Não existe nem mesmo a possibilidade de consumir coisas e enredos “de longe” porque tudo o que a gente vive a gente absorve. Incorpora.

E isso significa, às vezes, transformar um fato ao guardá-lo em nós.

4.

Estava lendo O Poeta Chileno, do Alejandro Zambra, e um diálogo sobre a nossa mania de registrar tudo no celular me chamou a atenção ao responder de uma forma tão crua o porquê desse hábito.

“O registrismo vai acabar com todo mundo, é um flagelo de verdade. — É pra eu me lembrar, gosto de tirar fotos pra me lembrar. — Você tira fotos porque sabe que nunca vai voltar. ”

Quem diz isso é uma poeta de meia idade. É claro que essa resposta tem um quê de conservadorismo e resistência com o novo, mas ainda assim me marcou porque até, então, eu nunca tinha pensado nisso. Que registramos as coisas (agora de forma material e física, não só com o nosso cérebro) porque não vamos mais voltar para elas. Mas aí me pergunto: e as lembranças? Quando que é feita a transformação de uma simples foto de um prato de macarrão em uma recordação sentimental de um pedido de namoro feito enquanto a mesa era posta?

O que acho engraçado dessa coisa toda é que, ironicamente, ao tentar congelar uma ocasião com um registro, a gente acabe criando uma memória completamente nova a partir desse fragmento. E que vai mudando tanto com o passar dos anos que, no futuro, teremos aquela imagem apenas como um pano base para uma enorme colcha de retalhos feita com diferentes e mutáveis narrativas sobre um fato vivido e registrado pelos nossos próprios olhos. A história se transforma mesmo depois de vivida.

5.

Talvez ao ver uma imagem a gente se lembre da coisa como ela realmente foi, como naquela VHS. Mas também fantasie ainda mais o que aconteceu, como quando vejo os registros dos primeiros 10 dias da minha filha. Não sei. Tudo fica louco e sem regras quando a gente coloca o sentir no meio.

Talvez viver seja experienciar o mundo com um olhar enviesado, parcial, sentimental e nosso. Seja escrever e reescrever a própria história um infinito número de vezes. E se existe algo mais bonito do que a possibilidade de recontar e reviver nossas próprias memórias, eu desconheço.

Tanto faz se o relato é confiável e se o registro é fiel.

Acho que no final, o que importa mesmo, é a lembrança.


Eu estou…

Lendo: Departamento de Especulação – Jenny Offill. Eu comecei literalmente ontem, depois de terminar O Poeta Chileno, então não posso opinar. Mas a premissa é boa e a capa é linda. Também estou lendo Um Livro dos Dias, da Patti Smith. Uma delícia! Maravilhoso pra ter uma dose de inspiração diária e uma indicação que combina perfeitamente com essa edição da newsletter. Fica a dica!

Vendo: Vi o final de Succession e achei impecável. Triste por não ter mais Jeremy Strong nos presenteando com Kendall Roy, mas feliz por ter vivido esse fenômeno. Falando em final, essa semana tem (?) a season finale também de Ted Lasso e, depois dessa temporada tão ruim, tô até feliz de dar tchau para o Richmond. Cá entre nós, quero só ver como eles vão fechar aquele mundo de arcos que eles abriram com um único episódio de encerramento. Também to vendo Casamento Às Cegas (sorry not sorry) e persistindo em Todas As Flores. Ah, isso tudo sem nenhuma regularidade e literalmente quando dá. Ter filho é isso, né?

Ouvindo: kkkkkkkk um dia eu juro que vou voltar a preencher essa seção.


Tem um filme bobinho e pretensioso (mas que eu gostei muito porque usa as letras do Bob Dylan como recurso narrativo) que chama Life Itself e que fala muito sobre esse conceito de narrador não-confiável. Tem um texto que sempre me volta à cabeça que, com minha tradução livre, é assim: o único narrador verdadeiramente confiável é a própria vida. Mas a própria vida também é completamente não-confiável porque está constantemente nos direcionando e nos enganando e nos levando nesta jornada onde é literalmente impossível prever para onde ela irá a seguir. A vida como o último Narrador não confiável.

Obrigada por me ler até aqui.

com amor,
Michele

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